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Conto - Reflexo

  • Camilla Bastos
  • 22 de ago. de 2014
  • 3 min de leitura

​Ela me encara novamente. Eu não preciso ler a sua mente para saber o que ela está pensando. Ela me odeia. Eu sei disso. Ela já me disse milhões de vezes. Ela passa seus dedos finos em seus cabelos negros e os amarra em nó no alto da cabeça. Eu copio fielmente seus movimentos. Já os tenho memorizado. É o que ela faz todo dia.


​Eu a encaro também. Vejo seus olhos negros afundados em camadas de água que já estão prontas a serem derramadas a qualquer momento. Seus olhos parecem fontes de água salgada. Os meus também. Não há nada que eu possa fazer para mudar isso.


​Vejo seus lábios se moverem. Ela sussurra algo. Eu não preciso ouvir o que ela diz para ter conhecimento de suas palavras. É o que ela diz todo dia quando me vê. Ela desvia seu olhar do meu, e eu desvio meu olhar do dela. Aquilo parece como liberdade por alguns momentos. Até que seus olhos fixam novamente nos meus. E eu não tenho escolha a não fazer o mesmo.


​Ela se afasta de mim, e eu faço o mesmo. Sinto-me aliviada por ter certa distância dela por alguns segundos. É uma pena que isso não dura muito. Ela me encontra rápido. Ela sempre me encontra.


​Eu a vejo novamente antes dela entrar no carro. Dessa vez, ela me evita. Ela olha através de mim. Já não ligo mais para isso. Pelo menos, não sou obrigada a perder-me naquela confusão de sentimentos que existem em seus olhos. Que existem em meus olhos.


​Ela se assenta, com sua cabeça baixa. Eu não consigo a observar nesse momento. Mas sei que ela está ali ao meu lado. Sei cada movimento que ela faz. Cada vez que sua caixa torácica expande e se contrai. Cada piscar de seus olhos. Fazemos nossos movimentos em uníssono. É assim que funciona. Ela não tem opção. Eu não tenho opção.


​Ela passa pelas portas automáticas sem ao menos ter interesse de saber se eu ainda continuo perto dela. Sem ao menos ter a esperança de saber se algo mudou ou não. Se ela me odeia menos. Se ela se odeia menos.


​Passo o dia observando-a apenas de longe. Gosto disso. É a única forma de eu não ser consumida pela dor que a consome. Pela dor que me consome. É a única forma que eu tenho de esquecer-me de quem eu sou. De quem ela é. Ela me olha de soslaio enquanto almoça, mas rapidamente desvia seu olhar de mim. Eu faço o mesmo. Ultimamente, ela tem procurado por mim com menos frequência. Acho isso bom. É o que ela quer que eu pense.​


​Tenho a sensação de que quanto menos ela me vê mais feliz ela é. Ás vezes sinto-me culpada por toda essa angústia que ela carrega dentro de si, que transparece em seu rosto pálido. Em meu rosto pálido. Eu sei que sou a culpada. Sou a culpada.


​Mas não foi sempre assim.


​Éramos muito próximas no passado. Ela não me odeia desde sempre. Ela costumava conversar comigo. Eu costumava conversar com ela. Ela costumava encarar-me com olhos felizes, com um sorriso puro nos lábios. Eu a retribuía incansavelmente. Éramos inseparáveis.


​Não entendo o que aconteceu.


​Ela cresceu.


​Eu cresci.


​Suas maçãs do rosto hoje são mais saltadas. Seus lábios são perfeitamente modelados para um sorriso agradável. Seus olhos amendoados guardam a íris castanha, assim como os meus. Sua pele de marfim contrasta com os fios negros que caem sobre seu rosto. Sobre o meu rosto.


​Porém, seu semblante só aprendeu a demonstrar um sentimento. Aquele que se esconde no íntimo de seu ser. Onde a tristeza e mágoa se encontram e cantam suas canções de cólera. Esse sentimento se engrandece toda vez que ela me olha nos olhos. Quando eu a olho em seus olhos.


​Ela não vê a mim da mesma forma que eu a vejo. Gostaria de falar-lhe o quão bela ela é. O quão bela nós somos. Gostaria de perguntar-lhe o motivo de tanta dor. Gostaria que ela soubesse que não há motivo para tanto lamento.


Mas ela não acreditaria em mim. Ela nunca acredita em mim. Ela me odeia. Sou suprimida pela sua ânsia em destruir-me. Em destruí-la. É o que eu sei que ela deseja. Não posso impedi-la.


​Ela me encara novamente.


​Eu não preciso ler a sua mente para saber o que ela está pensando. Ela me odeia.


​“Eu te odeio” ela diz.


​E a cada vez que ela fala isso para mim. Sou obrigada a dizer o mesmo a ela. Eu já disse. Não tenho opção. ​Estou acorrentada a ela. ​E ela a mim.


​Não! Não!


​Por favor!


​Uma lágrima escorre em nossos rostos. Quero consolá-la. Mas não posso.


​Estou acorrentada nesse espelho. Sou apenas um reflexo.


​“Eu te odeio” eu respondo de volta, esperançosa de que ela não acredite em mim.


 
 
 

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